Um novo medicamento só chega ao mercado se for testado em milhares de pessoas e, quase sempre, em vários países. É uma exigência básica de entidades regulatórias como a Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, ou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no Brasil. Se não conseguir incluir um número adequado de pacientes nesses estudos clínicos, a indústria farmacêutica não produz – e não lucra. Ela é a primeira interessada em realizar testes em humanos com rapidez. Mas não é a única. A pesquisa clínica traz desenvolvimento científico aos investigadores (médicos e outros profissionais), recursos financeiros às instituições públicas ou privadas onde ela é realizada e oportunidade de tratamento aos pacientes. Para muitos, ser voluntário é a única chance de receber atendimento adequado e acesso a um medicamento promissor, quando os remédios disponíveis deixam de funcionar.
Os milhares de pesquisas clínicas rea¬lizadas no Brasil não são regidos por lei. As normas são ditadas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão ligado ao Conselho Nacional de Saúde. Um novo projeto de lei, apresentado em abril pelos senadores Ana Amélia (PP-RS), Waldemir Moka (PMDB-MS) e Walter Pinheiro (PT-BA), pretende regulamentar a atividade. O tema foi debatido numa audiência pública em março do ano passado. “Chegamos ao consenso de que havia lentidão na análise dos processos e de que era necessário criar um marco regulatório”, diz a senadora Ana Amélia. “O projeto é um primeiro passo na busca de aperfeiçoamento da pesquisa clínica.” O texto, apoiado pelas empresas e por grande parte dos pesquisadores, desagrada a Conep e outras entidades, como a Sociedade Brasileira de Bioética.
A dificuldade de aprovação de estudos clínicos é uma reclamação recorrente das empresas e dos cientistas há pelo menos oito anos. Segundo a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), um estudo chega a levar um ano para ser aprovado no Brasil – bem mais que em outros países (dois meses nos Estados Unidos, seis no Reino Unido, sete na Argentina). Um levantamento realizado pela entidade em março revelou que, nos quatros meses anteriores, sete multinacionais haviam desistido de realizar 16 estudos no país de drogas contra o câncer, doenças raras, diabetes e esclerose múltipla. Não foi por falta de interesse.
A diversidade genética da população e a qualidade dos investigadores das ilhas de excelência em pesquisa fazem do Brasil um dos países mais atrativos para a realização de estudos clínicos – apesar das condições regulatórias desfavoráveis. A lentidão na análise dos processos impede o cumprimento dos prazos internacionais. A razão é a exigência de avaliação dos projetos em duas ou até três instâncias: o comitê de ética da instituição de pesquisa, a Conep (quando a empresa patrocinadora é estrangeira) e a Anvisa (se a droga ainda não estiver aprovada no Brasil). Nos Estados Unidos e na maioria dos países, o processo ocorre em apenas duas: o comitê de ética e a agência regulatória.
“O projeto de lei é um sinal de desespero, uma tentativa de que se abra uma negociação sobre um tema que prejudica os pacientes e a ciência no Brasil”, afirma Antônio Britto, jornalista e ex-¬governador do Rio Grande do Sul, que atualmente é o presidente executivo da Interfarma. “Não queremos diminuir a ética nem em um milímetro, mas precisamos aprovar os estudos com celeridade”, diz o oncologista Paulo Hoff, diretor clínico do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). O 12º andar do maior hospital oncológico da América Latina abriga 54 estudos patrocinados pela indústria. Em alguns casos, o valor dos contratos com as empresas é mais que suficiente para financiar todo o trabalho. “Quando isso acontece, usamos a verba excedente para realizar projetos de interesse da instituição que não recebem patrocínio”, diz Hoff. Os testes são disputados pelos pacientes.
Entre 2008 e 2014, mais de 1.000 doentes foram tratados com drogas não oferecidas pelo SUS. Quarenta e quatro receberam o remédio ipilimumabe, contra o melanoma, cujo tratamento custa R$ 400 mil por ano.Numa carta encaminhada aos comitês de ética das instituições de pesquisa, a Conep afirma que o projeto de lei ameaça os direitos dos pacientes. “É um desserviço à sociedade brasileira”, diz o médico Jorge Venancio, coordenador da Conep. Uma das críticas diz respeito à perda do direito de continuar recebendo o medicamento quando o estudo termina. O projeto propõe que a empresa seja autorizada a fornecer o remédio apenas se a interrupção implicar risco de morte ou piora relevante do estado de saúde do doente – e se não houver alternativa de tratamento no Brasil. A ampliação do uso de placebo (pílulas sem efeito terapêutico) é outro aspecto controverso. Atualmente não é permitido oferecê-lo a um voluntário se existir tratamento para a doença que se pretende investigar.
Pelo novo texto, o recurso pode ser adotado, desde que haja justificativa científica. Outra mudança é a criação de comitês de ética independentes. Isso abre a possibilidade de que a ética dos projetos seja julgada por comitês financiados pela indústria ou por associações de pacientes ligados a ela – o que representaria um claro conflito de interesses. “A Conep está fazendo um carnaval porque não se dispôs a ter um protagonismo para resolver o problema”, diz a senadora Ana Amélia. Todos perdem com a burocracia. Mudanças são tão necessárias quanto o respeito aos voluntários.
Fonte: Época Online