Após o boom de linhas de cosméticos voltadas para cabelos crespos e cacheados, o desafio da indústria da beleza no campo da diversidade se tornou produzir maquiagens que contemplem todos os tons de pele. E a miscigenação nacional mais uma vez faz do Brasil o lugar perfeito para esse desenvolvimento.
Com a crescente demanda de consumidores negros por cosméticos adequados a suas características, ampliar a paleta de cores é o novo potencial de negócios identificado pelas principais marcas desse mercado, das tradicionais às novatas.
O lançamento recente da marca Boca Rosa, primeiro voo solo da influenciadora digital Bianca Andrade, chamou atenção ao chegar ao mercado com nada menos que 50 tons de base com o Stick Pele, sendo 28 para a pele negra, alcançando as mais escuras.
— O Brasil é um país com uma escala de 144 tons de pele, é importante tentar representar o maior número de consumidoras no universo da maquiagem. Na antiga marca, eram nove tons de base. Quando nos tornamos independentes, passamos a priorizar a diversidade, investindo em mais tons. Não há nada de heroico em desenvolver produtos também pensados para a pele negra, estamos apenas começando a corrigir um erro bem antigo — diz Bianca, fundadora e CEO da Boca Rosa Company.
A Boca Rosa reivindica agora o posto de portfólio mais variado do mercado nacional. Antes, o título era da BT Skin, lançada em 2020 por outra influenciadora, Bruna Tavares, com 30 tons. A ex-jornalista de moda que foi uma das pioneiras nessa área na internet criou sua marca própria em 2016 com essa preocupação.
— A primeira base que fiz tinha 16 cores, o que já era muito para a época. Foi a primeira vez que teve base para peles retintas no mercado nacional. Com a linha BT Skin, a gente começou com a ideia de 20 a 25 tons e, durante o desenvolvimento, com a pesquisa e os consultores, sentimos a necessidade de aumentar para 30. E esse estudo se refletiu em todos os produtos de pele e de cor também, como os lip tints (espécie de batom) e as sombras, que são bem pigmentados para se adequar também à pele retinta — conta Bruna.
Pressão do consumidor
Segundo Hulisses Dias, analista de investimentos e especialista em finanças, a crescente competitividade do setor de beleza, que tem crescido mais que a economia como um todo, está obrigando a indústria a ir atrás de consumidores que há pouco tempo não eram prioritários. Mudanças geracionais aumentam a pressão.
— Em 2022, a indústria brasileira de cosméticos teve uma receita de mais de R$ 54 bilhões, de acordo com levantamento da TCP Partners. Considerando que cerca de 6% desse mercado são voltados para a comunicação e segmentação afro, então a gente está falando de aproximadamente R$ 3 bilhões nesse segmento. E a margem de lucro dessas empresas fica na ordem de 20%, então seria um lucro na ordem de R$ 600 milhões por ano — diz o analista.
Ele também cita dados do mercado de higiene e beleza divulgados pela Nielsen em 2021, com 5,9% de participação de produtos de maquiagem, protetor solar, xampu e pós-xampu voltados para afrodescendentes. Considerando que pretos e pardos são mais de 50% da população brasileira, o potencial é enorme.
Marcas estabelecidas no mercado há mais tempo seguem o movimento. Juliana Barros, head de Marketing da Avon, conta que a marca começou a investir em tons mais escuros em 2020, com a campanha “Essa é a minha cor”. Após pesquisas, workshops com clientes e a contratação de duas especialistas no tema como consultoras, a Avon chegou à sua atual cartela de 20 tons, 13 para pele negra.
— Chegamos à conclusão de que a miscigenação no Brasil é muito específica, com uma gama indígena muito grande, que faz com que o subtom da pele negra do Brasil seja muitas vezes avermelhado. Geralmente, a indústria trabalha com subtons azulados e amarelados. E aí a gente foi estudar para entender qual é o pigmento que precisa ter nas nossas formulações para chegar ao tom correto — ela explica.
Na L’Oréal, as 21 marcas da multinacional francesa presentes no Brasil têm estratégias diferentes para alcançar consumidores negros. Márcia Silveira, head de Diversidade, Equidade e Inclusão da companhia, cita como exemplo a Maybelline, que em 2019 relançou a linha Fit Me (base, pó e corretivo) com uma cartela ampliada para 18 tons. Já a Lancôme, marca premium do grupo, possui a linha Teint Idôle Ultra Wear (TIUW) com base e corretivo com 45 cores.
‘Racismo cosmético’
— Para entregar maior precisão e conforto para os consumidores de pele negra, utilizamos pigmentos azul ultramarine, que ajudam a não deixar a pele com efeito acinzentado, bem como o pigmento de óxido verde, que ajuda a não deixar a pele com efeito muito amarelado ou laranja — diz a executiva da L’Oréal.
Foi observando os tons de pele das pessoas ao seu redor que Tássio Santos, jornalista, consultor e maquiador profissional, resolveu, há 12 anos, começar a produzir conteúdo sobre maquiagem para pessoas negras.
Nascido em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, ele percebeu a grande quantidade de mulheres retintas da cidade não atendidas pelas paletas da maior parte das marcas, usando muitas vezes maquiagem que não era para elas.
— Não é questão de dificuldade tecnológica, porque quem faz uma cor consegue fazer todas. Não faz porque não quer ou não sabe como. Só que essa desculpa não cola mais, porque tem muita informação no mercado, muitos nomes capacitados para fazer consultoria. A marca que não avança nisso é porque não vê a comunidade negra como consumidora em potencial — diz Santos, que faz testes com produtos na própria pele nas redes.
Santos lançou recentemente o livro “Tem minha cor: quando se maquiar se torna um ato político” e cunhou o termo “racismo cosmético” para criticar marcas de cosméticos que negligenciam o público negro. Ele vê um avanço com a maior concorrência:
— Sinto que as marcas estão começando a enxergar a oportunidade de negócio. Tivemos algumas experiências recentes no mercado de marcas que lançaram 40, 50, 60 tons, contaram muito bem essa história e lucraram. Outras querem seguir esse mesmo caminho, não só por conta do compromisso de inclusão, mas também por razões financeiras.
Ele avalia que não é obrigatório para as marcas ter uma quantidade imensa de tonalidades para abarcar todos os tipos de pele, pois isso depende da composição do produto. Porém, adverte que itens que prometem se adequar a qualquer tipo de pele com apenas um tom geralmente não funcionam para pessoas retintas e podem ser uma forma de tentar parecer inclusivo sem ser.
Quem sente o problema na pele é Juliana Luziê, que atua como influenciadora digital desde 2016 testando produtos. Ela conta que seguidoras com pele tão escura quanto a sua esperam sua avaliação de um produto para saber se podem ou não comprá-los.
— Ainda há certa dificuldade para achar maquiagem para a minha pele. Claro que o mercado de beleza está muito avançado, mil vezes melhor do que quando comecei. Na época, eu usava uma sombra preta em vez de contorno porque não tinha. Se tivesse, era caro. Base também era difícil. Já fiquei cinza, esverdeada — lembra. — Mas eu fazia com o que tinha, tentava mostrar que as pessoas de pele negra poderiam, sim, usar maquiagem.
Foco nas retintas
Para Juliana, as empresas têm de ir além dos itens básicos:
— As marcas focam muito no lançamento de base, mas como é que a gente vai fazer uma maquiagem completa sem ter um contorno, um pó, e até uma sombra que dê certo na nossa pele? É um conjunto, e estão cada vez mais abrindo os olhos para isso.
Uma das marcas pioneiras na questão da diversidade, a Negra Rosa foi criada em 2016 por Rosângela Silva justamente para mulheres negras, com produtos principalmente para as que têm pele mais escura. Em 2022, quando foi comprada pela Farmax, a marca já tinha 54 produtos, da maquiagem à linha capilar. Desde então, já foram lançados mais 26 itens, turbinando as vendas. A receita bruta da marca se multiplicou por cinco entre o primeiro semestre de 2023 e o deste ano, diz a fundadora.
— O primeiro lançamento foi o batom, em 2016, com tons mais fechados, porque quando chega na pele retinta, o batom abre, já que o contraste com o tom do lábio é diferente. Quando lancei as bases, em 2017, já comecei com três tons escuros. Trouxe esse olhar de que a pele retinta tem de estar como prioridade — conta Rosângela.
Para ela, o avanço da indústria na diversidade é resultado da mobilização de quem está do outro lado do balcão:
— Não foi um movimento que partiu das empresas. A população negra começou a cobrar na internet, veio da pressão das consumidoras.
Fonte: O Globo