Dona de uma farmácia durante quase 40 anos, dirigente da Associação Nacional das Farmácias (ANF) ao longo de mais de duas décadas, Manuela Teixeira nunca imaginou que acabaria por ter que fechar as portas. Tentou manter o estabelecimento aberto até ao fim, passou por um PER (Plano Especial de Revitalização de Empresas), entrou em insolvência, chegou a “pedir um crédito pessoal para pagar ordenados”, conta ao jornal Público. Alguns dias antes do último Natal, porém, foi obrigada a desistir. Fechou.
A Farmácia Teixeira, na Baixa da Banheira, Moita, era um bom negócio. Tão bom que, há alguns anos, chegaram a oferecer-lhe três milhões de euros pelo alvará. Agora, Manuela acabou por fazer a transacção por 850 mil euros. “Não foi mal vendida”, admite ao Público, satisfeita porque a Teixeira passou para as mãos de uma jovem farmacêutica, em vez de ir para um grupo, “um desses que compram farmácias para fazer exportação paralela [venda de medicamentos para o estrangeiro, onde são mais caros]”.
“Fui vítima da crise”, afiança. Reconhece que deu dois “passos de gigante”, o primeiro em 1999, quando mudou de instalações (de uns exíguos 50 metros quadrados para um espaço quase quatro vezes maior), o segundo em 2006, quando comprou e adaptou um antigo stand de automóveis para poder ter todas as condições com que sempre sonhara.
Quinta farmácia do país a receber o certificado de qualidade, a Teixeira alargou o leque de serviços, dispunha de dois gabinetes de atendimento personalizado, um deles com nutricionista, fazia troca de seringas para toxicodependentes, acompanhamento de diabéticos, hipertensos e asmáticos, tinha quatro farmacêuticas e três técnicas. “As condições eram excelentes, mas não opulentas. Há quem vá à falência por má gestão, mas eu fui vítima da crise. Todas as minhas dificuldades têm a ver com investimentos”, alega Manuela, lembrando que o seu caso é um entre muitos. “Em 20 farmácias, três estão a lutar pela sobrevivência”, calcula, sublinhando que, ao longo do penoso período de dificuldades que enfrentou, apenas reduziu um ordenado, o da filha, que lhe seguiu as pisadas na profissão.
Mais de 400 insolventes
De negócio rico, as farmácias passaram, em poucos anos (menos de uma década), a negócio remediado, escreve o Público. Se há alguns anos se falava em trespasses milionários, da ordem dos quatro a cinco milhões de euros, agora há farmácias à venda que ficam sem comprador e a situação financeira de muitas está, garante a ANF, periclitante. Em Dezembro de 2013, mais de metade (1567) tinham fornecimentos suspensos e o montante global da dívida litigiosa ultrapassava os 306 milhões de euros, contabiliza a associação, que traça um cenário negro do sector. Os números da ANF indiciam, de facto, uma degradação progressiva: em Fevereiro deste ano, 130 farmácias estavam em processo de insolvência, duas vezes mais do que em Dezembro de 2012, e 281 tinham processos de penhora (mais 56% do que no final de 2012).
Desdramatizando a situação, os responsáveis do Ministério da Saúde alegam que, na prática, as farmácias que abriram nos últimos anos até suplantam as que fecharam. Desde 2010, encerraram 43 farmácias, segundo a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed). Os fechos, que em 2010 e em 2011 foram um em cada ano, multiplicaram-se a partir de 2012 (16 casos). No ano passado, outras 27 farmácias encerraram e, este ano, até 15 de Abril, o mesmo aconteceu a mais nove. Algumas voltaram a abrir, entretanto, o que justifica a contabilidade final do Infarmed.
Como se explica que a maior parte das farmácias se mantenha aberta, se enfrentam um cenário de tantas dificuldades, como garante a ANF? “Estão abertas porque os credores tentam encontrar condições, os próprios bancos querem que o alvará [que caduca ao fim de um ano, em caso de encerramento] se mantenha. Muitas estão a ser geridas por administradores de insolvência. Por vezes, para não perderem o alvará, abrem e fecham”, justifica Paulo Duarte, presidente da ANF.
Nem na farmácia há de tudo
Os problemas começaram “quando José Sócrates chegou ao poder”, recorda Manuela Teixeira, que não esconde o ressentimento pelas medidas políticas que “arrasaram” o sector. O então ministro da Saúde Correia de Campos mudou a legislação, acabou com a exclusividade da venda de medicamentos não sujeitos a receita médica nas farmácias, reduziu as margens de 20% para 18%.
Sucederam-se várias descidas do preço dos fármacos e, por fim, seguiu-se a liberalização parcial da propriedade. O actual ministro Paulo Macedo deu “a machadada final”, acrescenta Manuela, lembrando a acentuada quebra dos preços, para cumprir o memorando de entendimento assinado com a troika.
“Sofremos o duplo efeito da redução do mercado e da margem [de lucro]”, sintetiza Paulo Duarte, notando que a troika pediu “uma contribuição de 50 milhões de euros” às farmácias. “Acabaram por ser 310 milhões de euros, entre farmácias e grossistas. Qual é o sector que aguenta?”, pergunta. “As pessoas quando vão à farmácia sentem a diferença. Actualmente, nem na farmácia há de tudo”, lamenta. “Era um sector muito rentável, que deu muito lucro e levou muita gente a meter-se em loucuras, mas actualmente sucedem-se as insolvências. Conheço farmácias bem geridas que vão subsistindo, não com os lucros astronómicos de antes, mas aguentam-se”, contrapõe Diamantino Elias, secretário-geral do Sindicato Nacional dos Profissionais de Farmácia, para quem a ANF é “muito culpada” do estado a que o sector chegou. “Fomentou investimentos e deixou crescer ilusões. Mas também houve má gestão. Hoje, [os proprietários] querem reduzir os vencimentos, fazer despedimentos e muitas farmácias substituem farmacêuticos por estagiários”, critica.
Actualmente há farmacêuticos a ser contratados por “700 a 800” euros e acabaram-se os trespasses milionários. “Agora fazem-se transacções por menos de metade da facturação anual, quando antes a média era duas vezes a facturação”, explica ao Público Paulo Duarte.
“O negócio nunca mais vai ser o que era. Andámos para trás 20 anos. O que é mais grave é que há muitas farmácias insolventes, estão totalmente na mão dos bancos”, resume Aranda da Silva, ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos e antigo presidente do Infarmed. O que vai acontecer, vaticina, é que enquanto algumas vão fechar, “outras terão que baixar a qualidade”.
Quanto aos excessos do passado, admite que “algumas farmácias eram um negócio da China e havia ostentação de riqueza”, mas frisa que essas não passavam de excepções: “A farmácia média era um negócio equilibrado”.
Quem continua a não acreditar que a situação seja tão negra quanto a pintam é Jorge de Sá Peliteiro, que em 2012, através do seu blogue Impressões de um Boticário de Província, se propôs comprar uma farmácia por 250 mil euros no triângulo Porto-Viana-Famalicão. Não houve propostas.
“Não há dúvida de que a rentabilidade das farmácias desceu muito. Mas daí a dizer que as farmácias estão de luto e que vão fechar 600 [como fizeram os responsáveis da ANF] vai uma grande diferença. As que foram compradas por grandes valores estão em situação financeira difícil, agora as que nunca se meteram em loucuras continuam a ter capacidade de sobreviver”, assegura Jorge Peliteiro, para quem os preços “ainda estão muito elevados”, rondam “uma vez a 1,2 da facturação anual, quando antes chegavam a três vezes”. “Um negócio que está na falência devia ser mais barato”, remata.
Algo que também era impensável num passado recente e que nos últimos anos se tornou comum é o desemprego na classe. Por ano saem das faculdades cerca de 900 farmacêuticos, há muitos no desemprego e cada vez há mais jovens a pedir à Ordem dos Farmacêuticos a documentação necessária para poder emigrar.
“Aliviada por ter virado uma página complicada”, Manuela Teixeira agora só quer esquecer o passado. Mas avisa: “Se as farmácias começarem a fechar em massa, o povo não vai ter onde comprar medicamentos”.
Fonte: Público