Gestão pública indevida, distribuição orçamentária federativa desigual e deficitária, com municípios em difícil situação fiscal assumindo uma parcela cada vez maior dos gastos com saúde, poderão configurar, muito em breve, um quadro de séria crise no setor – agravada pelas medidas de austeridade fiscal. O comprometimento federal com serviços de saúde passou de 50,47% dos recursos, em 2003, para 41,45%, em 2016. Já a parcela que recai sobre municípios cresceu de 25,57% para 33,04%, nesse mesmo período. O aumento dos valores nominais ocorreu para as três esferas de poder, mas proporcionalmente maior para municípios, seguidos de Estados.
A análise está no estudo inédito “O sistema de saúde brasileiro em encruzilhada: progresso, crise e resiliência”, publicado na revista científica BMJ Saúde Global e produzido como alerta por especialistas da Universidade Harvard e do Imperial College London – com consultoria da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Ele mostra que, de 2003 para 2014, o gasto municipal per capita com saúde (recursos próprios, receitas federais e verbas estaduais) cresceu 126% – passando de R$ 315,7 para R$ 716,5 ajustados pela inflação. No entanto, desde 2015, essas despesas diminuíram em 6,3%, para R$ 671,1, em 2016.
Frente à progressiva deterioração financeira de Estados e municípios – que hoje nem sequer conseguem arcar com folhas de pagamento em efeito cascata que afeta as obrigações -, áreas essenciais ficam comprometidas mesmo em suas atuações mais primárias, apontam os especialistas. “A consequência esperada é o aumento da mortalidade por causas preveníveis e doenças crônicas em todas as faixas de idade, sendo mais pronunciadas em regiões vulneráveis e pobres, com populações em risco”, diz Adriano Massuda, médico sanitarista, pesquisador na Harvard T.H. Chan School of Public Health e consultor da Opas, que participou da elaboração do documento.
“Se analisarmos o gasto total público com saúde ao longo dos anos, há redução da proporção de repasses federais desde a implantação do SUS. Em 1988, perto de 75% dos recursos eram federais, e mais ou menos 5%, municipais. No ano 2000, a transferência federal era de aproximadamente 50%, com municípios arcando com 23% a 24%, e Estados com o restante. Em 2016, a contrapartida federal era de pouco mais de 40%”, relaciona.
Esse redimensionamento orçamentário, ressalta Massuda, provoca crises que vão desde escassez de medicamentos básicos, passando pela falta de profissionais em unidades, até a piora nas condições de trabalho dessas pessoas, que lidam frequentemente com situações extremas. “E isso diante de uma expansão da estrutura pública nos últimos 20 anos que requer investimentos cada vez maiores”. A combinação desses fatores, adverte, poderá reverter conquistas propiciadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com impacto na qualidade do atendimento.
O estudo tomou como base dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) do governo federal. Os especialistas reconhecem que, desde os anos 2000, o Brasil obteve avanços significativos na Cobertura Universal de Saúde – uma das metas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas para o desenvolvimento global até 2030. De 2000 até 2014, o gasto total com saúde subiu de 7% para 8,3% do Produto Interno Bruto (PIB) e a cobertura populacional com a Estratégia Saúde da Família (ESF) passou de 7,6% para 58,2%, mostra o levantamento.
Mas Massuda se diz inconformado com o fato de a área mais demandada principalmente nos cenários de crise – situações que ocasionam piora das condições de vida em razão do empobrecimento e da escalada do desemprego – ser a mais precarizada por medidas do governo inversamente niveladas com sua importância. “Esses fatores naturalmente aumentam a carga sobre serviços de saúde. E, apesar de todos serem atingidos, com consequências ruins, inclusive, na produtividade das pessoas em idade ativa, os idosos e as crianças estão especialmente expostos.”
Por meio de nota, o Ministério da Saúde informa que “tem destinado recursos crescentes, além de manter um diálogo permanente com a área econômica do governo federal. Os recursos executados pela União para o financiamento da saúde cresceram 462% nos últimos 18 anos, passando de R$ 22,6 bilhões, no ano 2000, para R$ 126,9 bilhões, em 2017. Para 2018, o orçamento aprovado pelo Congresso foi de R$ 130,8 bilhões, sendo R$ 117,6 bilhões exclusivamente para Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS)”.
Mas as fragilidades estruturais do SUS, argumenta Massuda, não foram resolvidas, especialmente em relação à distribuição das verbas. O estudo cita, por exemplo, decisões políticas recentes “de visão curta” que permitem, segundo os pesquisadores, desviar fundos destinados à Estratégia Saúde da Família e modificar a natureza multiprofissional de suas equipes. Tais ações, acrescentam, prejudicam princípios-chave e o sucesso da atenção primária, especificamente sua essência abrangente, com a família e a comunidade como foco.
A Emenda 95 determina que os gastos do governo passem a ser corrigidos pela inflação por 20 anos. No caso da saúde, ficou estipulado um mínimo de gastos no primeiro ano da vigência da regra, 2017, mas a partir daí passou a valer a correção pelo IPCA. Segundo os autores do estudo, embora as consequências das medidas de austeridade ainda não tenham sido totalmente dimensionadas, os efeitos adversos sobre o SUS e as desigualdades na saúde provavelmente, serão mais intensos no Brasil do que em países com alta renda que optaram por cortar severamente os gastos. “E uma das implicações será o retrocesso na melhoria nos indicadores de mortalidade infantil”, ressalta Massuda.
Para inverter essa situação, ele defende o fortalecimento da “resiliência do sistema”. “É preciso reforçar os investimentos e aperfeiçoar a alocação de recursos estratégicos, para que se possa absorver esse impacto”, diz. Mas o sanitarista recorre a dados para evidenciar que o país caminhou no sentido contrário, não somente com as medidas de austeridade que impactam a saúde, mas com uma política de distribuição que não promove equidade em relação à diversidade econômica das localidades.
O Ministério da Saúde contrapõe que a gestão do SUS, pela Constituição Federal, é compartilhada entre União, Estados e municípios. “Estes últimos responsáveis pela execução dos serviços, por complementar o financiamento e pela organização da rede de assistência. Pela Constituição Federal, os Estados e o DF [Distrito Federal] devem investir o mínimo de 12% de sua receita própria, enquanto os municípios devem aplicar pelo menos 15%. Para 2018, a regra do mínimo da saúde para a União é diferente: piso de 2017 (15% da Receita Corrente Líquida) corrigido pelo IPCA de 12 meses acumulado até junho de 2017, que foi de 3%.”
O problema, diz Massuda, é que o modelo não funciona, tem regras incompatíveis com a realidade. “Não é possível que os municípios suportem essa carga financeira. Há uma estrutura hoje praticamente impossível de ser custeada dessa forma, com isso um descolamento da realidade”, afirma o sanitarista.
Fonte: Interfarma