Na entrada do Laboratório Farmacêutico do Rio Grande do Sul (Lafergs), entre as placas de homenagens e inaugurações expostas na parede, uma se destaca : “Recorde de produção de medicamentos: 140.118.442 unidades fabricadas em 1997”.
A inscrição na folha de metal remete a um passado de glórias da estrutura pública que irá completar quatro décadas no ano que vem, mas que não produz um único comprimido, xarope ou pomada há quase nove anos.
No período, mesmo em coma, o Lafergs consumiu R$ 28 milhões dos cofres públicos, em valores corrigidos pela inflação. O montante gasto com manutenção e investimentos seria suficiente para contratar e manter um médico em cada município gaúcho por um ano e meio.
Somente em 2012, o desembolso com despesas como conservação de bens, vigilância, energia elétrica, diárias e telefone foi de R$ 729 mil. Tudo para que o laboratório, um departamento da Fundação de Pesquisa e Produção em Saúde (Fepps), volte a cumprir sua finalidade.
Quando o Lafergs fechou as portas, em 2004, no governo Germano Rigotto (PMDB), a promessa era de que a fabricação de remédios para distribuição e comercialização na rede pública fosse paralisada somente por 60 dias.
O prazo seria necessário para que fossem executadas reformas que permitiriam triplicar a capacidade produtiva da estrutura e ampliar a receita de R$ 830 mil para R$ 14 milhões (R$ 21,8 milhões em valores atualizados).
As obras de modernização e ampliação, contudo, atrasaram seis anos e custaram o dobro do previsto, sendo concluídas em 2010 sem dar condições de operacionalidade à estrutura. Um dos percalços foi o fato de que o projeto inicial, elaborado em 1999 e revisado em 2003, não levou em consideração novas normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que entraram em vigor naquele ano.
Relatórios técnicos apontam tropeços
Mas por que, mesmo após investimentos milionários, o Lafergs continua fechado? Zero Hora teve acesso a relatórios da Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage) e do Tribunal de Contas do Estado (TCE), produzidos entre 2004 e 2010, que expõem um histórico de descaso com o patrimônio público e uma série de tropeços que culminou na estagnação (veja os principais apontamentos).
O efeito colateral mais grave da paralisia do laboratório, contudo, foi a perda de todos os registros de medicamentos, o que aumentou o desafio de colocar a estrutura novamente nos trilhos.
Equipamentos novos nunca foram utilizados
Em um labirinto de salas e corredores, equipamentos da década de 1970 dividem espaço com máquinas mais modernas, adquiridas em meados dos anos 2000, mas com prazo de garantia prestes a expirar – ou já expirados – sem que nunca tenham sido utilizadas.
A impressão é de viagem no tempo, mas o cenário não é o de abandono. Pelo contrário. Não fosse pela pouca circulação de pessoas e pela ausência de ruídos típicos de uma fábrica, a limpeza impecável do chão, vidros e utensílios e o ambiente climatizado poderia confundir os mais desavisados.
Quem conduz a reportagem pela estrutura de 3 mil metros quadrados – o equivalente a quase meio campo de futebol – é o diretor do Lafergs, Paulo Mayorga. Entusiasmado, ele conta que, assim que assumiu o cargo, em 2011, uma de suas primeiras tarefas foi fazer com que o “coração da fábrica”, o setor de Controle de Qualidade, voltasse a bater.
Para cortar despesas, a equipe de 30 pessoas, na época, foi reduzida pela metade. O ex-diretor da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) acredita que a retomada da produção de medicamentos pelo Lafergs está a um passo de acontecer.
Segundo ele, os valores gastos com a manutenção da estrutura são fundamentais para que ela volte a operar.
— Para que a gente tenha qualquer aprovação da vigilância, é preciso estar com as coisas em dia, e isso significa ter o laboratório aparelhado, com equipamentos calibrados, matérias-primas disponíveis, técnicas testadas e validadas. O fato de não produzir não significa que não haja uma atividade interna — diz.
Saudosista, o farmacêutico Mauro Gomes, que trabalhou no local por quase uma década, sendo realocado posteriormente devido ao fechamento, não vê a hora da reativação.
Convidado a voltar para o laboratório, ele lembra dos tempos em que, quase todos os dias, caminhões carregados levavam medicamentos para a Divisão de Assistência Farmacêutica. A esperança é de que, em breve, cenas como essa voltem a fazer parte da rotina, hoje limitada a testes e à manutenção da estrutura.
— A gente tem uma ligação quase sentimental com o Lafergs. Daqui, levamos até cicatrizes — diz, mostrando a mão em que carrega a marca de um corte provocado por um balão de ensaio.
Perdas de insumos
Um caso emblemático de desperdício do Lafergs foi apontado pela Cage e pelo TCE. Em 2005, 60 quilos de sulfato de morfina foram comprados por R$ 442,6 mil. O material seria utilizado na produção de morfina farmacêutica, o que não ocorreu.
Quatro anos depois, metade do insumo estava prestes a vencer. A Fepps contratou a empresa Cristália, para transformar 30 quilos em 46,6 mil frascos de morfina farmacêutica, por R$ 630 mil.
A medida, que daria sobrevida de 24 meses ao produto, foi adotada tendo em vista que a Secretaria da Saúde poderia consumir 48 mil frascos. Contudo, até março de 2011, só 11 mil frascos tinham sido comprados.
Em 2010, os demais 30 quilos foram revendidos à Cristália por R$ 40 mil — valor 5,5 vezes inferior ao pago na compra. Na época, Cage e TCE calculavam prejuízo de R$ 890 mil.
Para operar, Lafergs ainda precisa de R$ 25 milhões
Apesar do otimismo, o diretor do Laboratório Farmacêutico do RS (Lafergs), Paulo Mayorga, reconhece que o caminho para a reativação total do órgão é longo e passa por questões como reposicionamento, contratação de pessoal, recomposição de portfólio e investimentos de R$ 25 milhões em maquinário.
Mayorga tem a missão de dar aos gaúchos um bom motivo para que as quatro décadas do laboratório, em 2014, sejam, de fato, motivo de comemoração. Por isso, a ideia é que a produção seja retomada no ano que vem, tendo o protetor solar como abre-alas.
A fabricação do cosmético, além da facilidade de registro, terá como objetivo atender à lei estadual que determina distribuição gratuita do produto a agricultores familiares, devido à elevada incidência de câncer de pele no Estado.
Mas o primeiro passo para que a estrutura volte a cumprir sua vocação foi dado em abril, com a assinatura de três parcerias de desenvolvimento produtivo (PDPs), envolvendo Lafergs, Ministério da Saúde e o laboratório Cristália, de Itapira (SP). Por meio delas, o governo federal pretende adquirir medicamentos para tratar malária e leishmaniose a custo reduzido e obter transferência de tecnologia internacional para laboratórios do Brasil.
A largada na produção, ainda sem data, será no parceiro privado, que arcará com os custos de registro e desenvolvimento dos produtos. Em até cinco anos, a fabricação dos três medicamentos, que representam gasto anual de R$ 14 milhões para o Ministério da Saúde, deverá ser transferida para o Estado. Em contrapartida, o Cristália passa a ser fornecedor de matéria-prima ao final da parceria.
— Conseguimos fazer milagre em dois anos, embora as pessoas achem que está demorando — avalia o diretor, destacando que as PDPs poderão reduzir prazos e custos da reativação.
Laboratório deve atuar nas brechas do mercado
Para o presidente da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps), José Vellinho Pinto, o papel do Lafergs não é o mesmo de décadas atrás.
Na avaliação dele, ex-prefeito de Canela, se antes o laboratório produzia dezenas de tipos de medicamentos, competindo, muitas vezes, em desvantagem no mercado, atualmente o seu dever é preencher espaços deixados pela iniciativa privada, como na área de doenças negligenciadas — que atingem a parcela mais pobre da população e marginalizada pela indústria farmacêutica.
— Lembro que, quando falavam de medicamento do Lafergs, a gente até torcia a boca, porque vinham e nos faziam comprar, e o preço era maior que o de mercado, e o produto, às vezes, não chegava — recorda o ex-prefeito.
Diretor do Lafergs, Paulo Mayorga também aponta a competitividade do mercado farmacêutico como um agravante para a crise enfrentada pelos laboratórios oficiais. Segundo ele, com a tendência de fusão de empresas, o acesso fica cada vez mais restrito, pois esses grupos passam a fabricar milhões de unidades em pouco tempo, reduzindo o preço final.
Uma das alternativas para que o laboratório conquiste a sustentabilidade, conforme o diretor, é a mudança de figura jurídica do atual departamento da Fepps, mas a discussão ainda é incipiente. Questionado sobre uma possível venda da estrutura, Mayorga é enfático:
— Posso estar equivocado, mas desconheço casos no Brasil de estruturas deficitárias que tenham sido privatizadas. Seria um retrocesso, porque o Lafergs é um grande patrimônio público, e a ideia do medicamento como elemento da soberania nacional é uma coisa muito forte para muitos países.
A passos lentos
O Lafergs foi fundado em 1972, no governo Euclides Triches, com o objetivo de produzir medicamentos para atender aos programas de saúde, com distribuição e comercialização na rede pública
Governo Germano Rigotto
— Em setembro de 2004, a fábrica foi fechada para que fossem executadas as obras de ampliação. Uma empresa foi contratada por R$ 4,5 milhões, com prazo de trabalho de 120 dias.
— O então secretário da Saúde, Osmar Terra, chegou a inaugurar parte das instalações físicas em março de 2006. A expectativa era de que ainda naquele ano fosse retomada a produção, mas as obras não foram concluídas.
Governo Yeda Crusius
— Por conta do atraso nas obras, o contrato de execução foi rescindido em 2007. No ano seguinte, outra empresa venceu a licitação de R$ 3,2 milhões, com prazo de 180 dias para conclusão dos serviços.
— Em dezembro de 2010, foi inaugurada a obra de ampliação, mas ainda sem garantir a retomada da produção. Na época, o governo calculava ter investido R$ 10 milhões para que o laboratório voltasse a produzir medicamentos de acordo com as normas da Anvisa.
Governo Tarso Genro
— Em 2011, o Lafergs obteve da Vigilância Sanitária a condição técnica operacional (CTO), documento essencial para o encaminhamento da aprovação de novos registros de medicamentos na Anvisa. Devido à prolongada inoperância, o Lafergs perdeu o registro de 12 remédios produzidos até 2004.
— Há dois meses, Lafergs, Ministério da Saúde e Laboratório Farmacêutico Cristália, de Itapira (SP), assinaram parcerias de desenvolvimento produtivo (PDP) de três medicamentos para tratamento da malária e da leishmaniose.
— A expectativa é de que produtos com a marca Lafergs, fabricados pelo Cristália, cheguem ao mercado no ano que vem. Contudo, a reativação da indústria ainda depende de investimentos na ordem de R$ 25 milhões, segundo a direção.
Fonte: Interfarma