O principal problema para o futuro da ciência no país é dinheiro. Os recursos destinados pelo governo federal minguaram nos últimos anos —o nível atual equivale, se corrigido pela inflação, à metade daquele de 2013.
O cenário preocupa cientistas, economistas e industriais, mas tem, com a chegada do novo governo, uma chance de mudar de trajetória.
O panorama é ainda mais grave se for considerado que o número de pesquisadores só cresce no país. Os cadastros na base do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) dobraram entre 2008 e 2016, chegando a 200 mil.
Trocando em miúdos, há menos recursos para muito mais gente.
Em sessão da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara na última quarta-feira (7), da qual participaram representantes da Embrapa, Fiocruz, das instituições de ensino superior, além órgãos do governo, a crise de financiamento foi lembrada por quase todos.
Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências e professor de física da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), usou a hipótese da Rainha Vermelha —à qual muito se recorre em ecologia para explicar a relação entre os diversos organismos— para ilustrar o cenário atual, remetendo-se a uma citação do livro “Alice Através do Espelho”, de Lewis Carroll: “É preciso correr o máximo possível para permanecermos no mesmo lugar.”
“Estamos andando para trás, temos que nos comparar com os outros países. Não adianta só correr, tem que correr mais que os outros”, disse Davidovich na reunião.
Um exemplo que o físico cita é o da Eslovênia: o pequeno país do Leste Europeu ampliou os gastos com ciência e tecnologia, hoje totalizando um investimento de 2% do PIB no setor. Hoje a nação já coleta benefícios como maior competitividade de setores da indústria e celebra parcerias internacionais com países como os EUA e a China. No Brasil, o percentual investido foi de 1,3% em 2016.
Alguns países, como Coreia do Sul e Israel investem mais de 4% do PIB na área científica. No país asiático, por exemplo, 77% desse dinheiro vem do setor privado, enquanto no Brasil, mais da metade fica por conta do governo.
Ainda durante a campanha presidencial, Bolsonaro afirmou que o objetivo era que o índice de investimento chegasse a 3% do PIB até o fim do mandato, somando recursos públicos e privados.
Os recursos públicos são importantes especialmente para o financiamento da chamada pesquisa básica, que visa ampliar o conhecimento sem obrigatoriedade de gerar como resultado um produto ou benefício econômico.
As propostas até então divulgadas pelo presidente eleito e pelo futuro ministro da ciência, o astronauta Marcos Pontes, sugerem que deve haver maior interação entre indústria e universidades e institutos de pesquisa, com a ideia de angariar recursos do setor privado.
Uma questão a ser levada em conta é que nem sempre essa interação é benéfica para ambas as partes.
“A gente encontra muitas pessoas que fazem pesquisas que têm pouco a ver com as aplicadas ao setor industrial. Mas elas buscam de alguma forma dar essa conotação, tentando acoplar à indústria somente para obter recursos. Não é isso que a indústria está procurando”, afirma Dante Alario Junior, diretor científico e acionista da Biolab Sanus Farmacêutica.
Mas pode haver ainda outros motivos para a baixa participação da indústria no montante investido em C&T.
A Biolab, por exemplo, optou por criar seu centro de inovação no Canadá graças a incentivos locais e à disponibilidade de profissionais qualificados no mercado do país, o que não era tão visível por aqui, diz Alario Junior. Outro ponto ainda é a burocracia para parcerias com institutos de pesquisa.
Dessa forma, no quesito inovação, apesar de ser a oitava economia do mundo, o Brasil amarga a 64ª colocação no ranking internacional Global Innovation Index.
Apesar de relativa melhora na produção de patentes nos últimos anos, o número ainda é baixo em comparação a outros países.
Além disso, o Brasil também tem outros entraves, como infraestrutura deficitária, formação insuficiente de profissionais, ambiente político instável e dificuldade para se iniciar um negócio.
Mesmo considerando que houvesse mais investimentos empresariais, ainda haveria os desafios no setor público.
Os cortes de verbas governamentais afetam, por exemplo, o CNPq (ligado ao MCTIC, Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), que, com um deficit de R$ 300 milhões (o orçamento de 2018 foi de R$ 1,1 bilhão), além de não poder expandir suas atividades, só conseguiria pagar seus bolsistas até setembro de 2019.
Neste mesmo ano uma situação semelhante aconteceu com a Capes (agência de fomento ligada ao MEC). Após uma carta de seu conselho superior endereçada ao ministro Rossieli Soares da Silva, houve a promessa de que o orçamento seria recomposto.
A essa altura, as tentativas de mudança no Orçamento de 2019 são mais complicadas porque dependem necessariamente da subtração de recursos de outras áreas, o que pode gerar animosidade e custo político.
Dessa forma, não há garantia de que as demandas dos cientistas serão equacionadas.
Segundo o economista Marcos Cintra, presidente da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos, agência vinculada ao governo federal) e integrante da equipe de transição do presidente eleito Jair Bolsonaro, os últimos governos não consideraram a ciência e a tecnologia como base do desenvolvimento econômico e da geração de riqueza e de empregos para o país.
“O ajuste fiscal é forte e necessário, mas a gestão deveria ter feito uma priorização”, afirma Cintra. Assim, em vez de sofrer cortes como aconteceu com diversos setores, os investimentos em ciência e tecnologia deveriam ser mantidos, mais bem geridos e até mesmo ampliados.
“Em vários países do mundo, mesmo quando há crise, a ciência e a tecnologia são incrementadas, não diminuídas —são antídotos que reduzem custo de produção, criam competitividade em novos mercados”, afirma Cintra.
O pensamento pode ser exemplificado pelo caso da China, que nas duas últimas décadas vem incrementando seus investimentos na área e hoje é o segundo país que mais aplica no setor, com 450 bilhões de dólares anuais (2% de seu PIB).
Para Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), a ausência de recursos, no fim das contas, debilita todo o setor: pesquisa básica, pesquisa aplicada e inovação.
“É preciso balancear o orçamento para fazer o sistema se desenvolver em todas as direções”, diz Pacheco.
Ele afirma que mesmo pesquisas inovadoras do setor privado, que envolvem risco, devem contar com a participação do setor público, o que acabaria alavancando o investimento das empresas, que não precisariam se arriscar sozinhas.
Mas de onde tirar o dinheiro para tanta mudança?
Recorrente em qualquer conversa sobre política científica, uma possível e bilionária alternativa é o FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que recebe recursos originários de impostos, juros de empréstimos, royalties da produção de petróleo e gás, da concessão de estradas, geração de energia hidrelétrica, entre outros.
O valor arrecadado anualmente pelo fundo no último ano foi de R$ 4,3 bilhões. No entanto, R$ 3,4 bilhões foram congelados.
Um problema é que o fundo tem natureza contábil, ou seja, os recursos não gastos em um ano não são poupados para o futuro e acabam sendo usados para reduzir o deficit do governo.
A alternativa de transformar o FNDCT em um fundo financeiro (ou seja, que acumula recursos ao longo dos anos) é uma das sugestões de Cintra para melhorar o panorama do financiamento científico no Brasil.
Além disso, há outras iniciativas em curso, como dois projetos de lei (PL). Um deles —de autoria do senador Otto Alencar (PSD-BA)— visa impedir o contingenciamento do FNDCT; o outro —assinado pelo deputado e ex-ministro da ciência Celso Pansera (PT-RJ)— visa destinar 25% dos recursos do Fundo Social do pré-sal para a Ciência e Tecnologia.
Se aprovados, os PLs gerariam alguns bilhões de reais a mais por ano para a área.
Os impactos da falta de recursos na ciência nacional são graves e imediatos, afirma a biomédica Helena Nader, professora da Unifesp e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
“O futuro parece sombrio: as pessoas que estão em formação ficam à deriva, sem ter como concluir os trabalhos. Outro problema é o desmantelamento de um sistema que levou muitos anos para ser construído.”
“Se alguém do governo atual ou que vai assumir parasse para pensar, reverteria esse quadro na hora. O país está investindo pouco mesmo nas áreas em que mais tem competência, como no setor agropecuário, na Embrapa. O agro só é pop porque tem ciência”, afirma a professora.
Para que os recursos da ciência não sejam mais ameaçados, há um consenso de que é preciso convencer parlamentares e governantes que esses gastos em pesquisa também geram retorno financeiro e social para o país no médio e no longo prazos.
Esse convencimento, afirma Marcos Cintra, implica deixar claro para a população que a questão é importante, demonstrando que o progresso científico trouxe inúmeros benefícios —dos veículos elétricos aos tratamentos para o câncer, passando até mesmo por questões mais amplas que afligem a humanidade (como se deu o processo de ocupação da América ou qual o destino do Universo, por exemplo).
Outro ponto em que há concordância entre especialistas é que é preciso decidir onde investir as verbas. A pulverização de recursos dificulta que áreas prioritárias ou com grande potencial despontem no cenário mundial.
Para Cintra, também falta uma avaliação mais criteriosa e permanente dos resultados dos investimentos em ciência. Seria necessário para isso, a avaliação não só dos gastos mas também dos impactos gerados.
O que não pode haver é desperdício. Em um episódio recente da ciência brasileira, dezenas de milhares de estudantes foram enviados para o exterior pelo programa Ciência sem Fronteiras. Muitos cientistas e gestores públicos avaliam negativamente a ida do que seria um excesso de alunos de graduação.
O programa chegou a custar mais de R$ 3 bilhões ao ano (por aluno, cerca de R$ 100 mil ao ano), mas não eram realizadas mensurações dos impactos gerados graças aos estágios no exterior nem avaliações sistemáticas dos estudantes. Em 2017, o Ciência sem Fronteiras foi descontinuado.
“O Ciência sem Fronteiras investiu uns US$ 5 bilhões ao longo de quatro anos. É muito dinheiro. […] Houve um planejamento meio apressado do programa. Não se cogitou na época a questão do ‘após’. É uma pena, uma lástima que tenhamos investido tanto dinheiro e depois ouvir uma pergunta dessa: ‘o que nós vamos fazer [com esses bolsistas]?’”, afirmou o representante da Capes, Geraldo Nunes ao ser questionado sobre o programa na reunião da CCTCI da Câmara.
Os recursos destinados ao programa vinham essencialmente do MEC. Curiosamente, com 53% do total, o órgão é a principal fonte de recursos para a ciência e tecnologia no país, graças ao fomento à pós-graduação pela agência Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e à verba para universidades federais. O Ministério da Ciência fica em segundo lugar, responsável por 17,2% dos recursos para a área.
É provável que o ministério a ser assumido por Marcos Pontes perca a área de comunicações e passe a abranger a área de ensino superior, hoje vinculada ao Ministério da Educação e que demanda R$ 75 bilhões ao ano, segundo estimativas.
Para Helena Nader, ensino superior e ciência e tecnologia são áreas que têm sinergias, mas que devem ser geridas de forma diferente —e que deveriam existir em ministérios também distintos.
Um agravante é que mais de 70% dos estudantes de ensino superior no país estão em instituições privadas, que, com poucas exceções, têm baixa atividade de pesquisa.
Já Marcos Cintra diz que essa integração acontece em outros países com sucesso, como no Japão e na França. “Acho que faz sentido. A ligação dessa área com ciência e tecnologia é mais forte do que aquela com a educação básica. A questão aí é menos pedagógica ou de infraestrutura para educação —mais necessárias para o ensino básico”, afirma o economista da equipe de Bolsonaro. “É uma visão moderna do novo governo deixar a educação menos ideologizada.”
Cientistas também especulam que possa acontecer uma fusão da Capes e do CNPq, com receio de que as verbas para o setor sejam reduzidas.
Cintra diz não achar a ideia ruim. “Fusões em geral são sempre difíceis. Há sempre oposição, grupos que tentam preservar seus espaços, mas muitas vezes elas fazem sentido no final das contas.”
Além dos desafios de fusão e de orçamento, o novo ministro terá de lidar com outras questões importantes.
Estão nessa lista a inauguração e a retomada das atividades da base brasileira na Antártida (destruída após incêndio e agora reconstruída), a participação do Brasil no observatório espacial internacional ESO (o país foi expulso da colaboração por não pagar sua parte) e a inauguração do acelerador de partículas Sirius (que promete ajudar no estudo de diversas áreas e que já custou R$ 1,29 bilhão e vai custar ainda mais R$ 510 milhões nos próximos dois anos).
Fonte: Folha de São Paulo